Leituras sobre cinema

May 28, 2006 at 11:13 pm (Cinema e TV, Strange Land)

Uma vez que por razões pessoais tenho andado temporariamente impossibilitada de dedicar a atenção que quero ao blogue, não tenho tido o tempo ou a capacidade mental para escrever de uma forma mais atenta e trabalhada. Ou seja, ultimamente as amibas devem ler mais do que eu e quanto a escrever resenhas, nem vê-las. O que me tem limitado a leituras de textos na Internet sobre os mais variados acontecimentos notáveis do momento. Curiosamente, cerca de 65% das minhas leituras são sobre cinema.

Com algum pesar meu, não tenho o sentido crítico a cinema como desejaria. E quando falo em sentido crítico, falo na capacidade de escrever resenhas sobre filmes e acertar na mouche. Pelo menos sinto que nunca o fiz de forma tão satisfatória como faço o mesmo em relação a livros. Mas a minha relação com a literatura foi sempre muito mais profunda e se dedicar tempo suficiente, um bom livro revela-me todos os seus segredos, mas nunca um filme que constantemente me perturba ou me deixa perplexa com as suas múltiplas leituras.

Ainda assim, um dos meus guilty pleasures é passar todo o tempo que me for possível a ler sobre cinema. Leio de tudo o que encontrar na web. E isto é o que encontrei nos últimos tempos digno de ser partilhado.

Li há uns dias uma reflexão um tanto ou quanto informal sobre o desaparecimento do glamour em Hollywood.
Não é uma questão nova e desde há muitas décadas, mais precisamente desde os anos 60, que o glamour que imortalizou Hollywood nos seus primórdios morreu.

glamour

Fundamental to glamour were wit, urbanity, intelligence and a talent for adapting to change.

Glamour tem tanto a ver com dignidade, como com todos estes factores. A verdadeira diva estava acima dos mortais comuns e vivia num mundo de estrelato só seu e dos que escolhesse acompanhá-la. Mas a existência do glamour nunca se limitou a uma questão de compostura e classe, sendo antes desencadeada por um conjunto de circunstâncias históricas vitais para compreender a relação entre América e Hollywood. Os musicais (Top Hat, Swing Time, Shall We Dance) e as screwball comedies dos anos 30 e 40 (My Man Godfrey, Bringing Up Baby) serviam como fantasias escapistas numa era marcada pela Grande Depressão e instabilidade política, moral e económica. Os actores e actrizes de estúdio eram produtos de uma fábrica de sonhos determinada a manter o sonho vivo. E por isso era essencial que se apresentassem com rostos, penteado, vestuário imaculado, com o estilo certo e, acima de tudo, com o talento certo para personificar um ideal.

Ainda dentro desta temática, para os que estejam interessados em ler uma curta panorâmica da história do cinema americano (em português) através de uma perspectiva de géneros, recomendo este excelente resumo que atravessa uma história de décadas e que teve como ponto de partida a reflexão sobre a vida e morte dos mais variados géneros, desde o horror, comédia, aventura, passando pelo filme noir, drama, até ao fantástico e ficção científica. Palavra que se fica a conhecer melhor a história do cinema, embora de forma condensada.

Goste-se ou não de animação japonesa, mais vulgarmente designada por anime, o seu impacto no cinema fantástico é fundamental e foi capaz de levá-lo a um ponto tão além das convenções do género que é loucura descartar o seu potencial e legado. Sobre este assunto, e em particular, sobre a capacidade de os animes se assumirem como espelhos da sociedade japonesa, chamaram-me a atenção estes dois excelentes textos sobre Akira e Spirited Away (A Viagem de Chihiro). Resenhas muito bem escritas e incisivas.

E eis uma boa notícia. Finalmente, após vinte e cinco anos desde a sua estreia, irá ser lançado em 2007 a special edition do clássico de ficção científica Blade Runner que irá incluir as quatro versões do filme, tendo já sido resolvido o problema em relação aos direitos de autor (A Warner não irá perder agora a oportunidade de fazer dinheiro, devem vender o mesmo filme em diferentes edições de DVD).

BR

E vindo de Cannes, o vencedor foi Ken Loach com o seu filme simpatizante da causa irlandesa The Wind that Shakes the Barley, mas na verdade o nome do vencedor é o facto de menor relevância num festival que pode revelar-se perigoso para produtoras americanas menos cautelosas em relação aos seus produtos comodistas ou defraudores de expectativas. Até porque é sabido como Cannes rendeu-se a decisões mais pautadas por activismo político do que propriamente valor artístico. Essa avaliação cinéfila e artística cabe antes de mais, não ao júri, mas à crítica internacional que irá recomendar ao público se deve ou não perder o seu tempo com os filmes em cena. E eles não terão misericórdia de nenhum cineasta, por mais consagrado que seja.

A Hollywood Reporter expôs bem essa questão num artigo que aponta alguns casos paradigmáticos dessa má gestão de expectativas por parte das grandes produtoras e distribuidoras: Sofia Coppola com Marie-Antoinette, Southland Tales de Richard Kelly e, acima de tudo, O Código Da Vinci de Howard foram vaiados e apupados, vendo bastante da sua credibilidade afectada (finalmente! A crítica demorou em reconhecer a realização asquerosa, manipuladora e puramente blockbuster de Ron Howard).

Novas aquisições na feira do livro:

Pequenas Grandes Infâmias de Panos Karnezis (autografado)

O Agente de Bizâncio de Harry Turtledove (2 volumes)

Se puderem, passem pelo stand da Tinta da China, uma editora recém-nascida, mas já com um livro vencedor em 2005, o excelente ensaio de Rui Tavares, O Pequeno Livro do Grande Terramoto. Apesar dos relativamente poucos livros, o design e grafismo de qualidade, aliado a apostas irreverentes e ousadas, pode tornar esta editora the next big thing. Se puderem, vejam também a mítica esponja de lavar louça exposta no stand. Só me limito a dizer que não se trata de uma simples esponja…

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Bibliofilia descarada

May 24, 2006 at 3:09 pm (Livros/BD/revistas)

Em anos recentes, descobri a maravilha de comprar livros em alfarrabistas, seja nos sítios do costume no Chiado ou nas ocasionais feiras do livro que ainda se vão encontrando na cidade. Embora não seja com o mesmo entusiasmo que visito as feiras mais recentes pelo simples facto de serem sempre os mesmos livros vendidos e com as pérolas cada vez mais inacessíveis, foi com bastante agrado que encontrei numa pequena feira na Faculdade de Letras de Lisboa livros bem mais interessantes que o usual.

Eis as minhas novas aquisições.

The Marianne Trilogy de Sheri S. Tepper – Uma autora bastante prolífica na fantasia e ficção científica, nunca li nada antes da sua autoria. Constituído pelos volumes Marianne, the Magus and the Manticore; Marianne, the Madame and the Momentary Gods e Marianne, the Matchbox, and the Malachite House, parecem ser difíceis de encontrar mas das poucas críticas que encontrei descrevem-no como a história de uma personagem que foge de uma vida de maus tratos e abusos e parte numa série de aventuras em outros mundos for there is magic in Marianne’s blood, and magic in her soul. Oh well, porque não, pensei eu.

Uncle Silas de Sheridan Le Fanu – A minha relação com Sheridan Le Fanu começou no Fórum Fantástico com o lançamento da edição portuguesa de Carmilla e sobre a qual anunciei o lançamento nos Filhos de Athena neste link. Foi em Le Fanu que outros grandes autores do horror gótico do séc. XIX foram buscar inspiração e ao ver uma edição inglesa bem preservada de Uncle Silas que constitui juntamente com The Rose and the Key e a colectânea A Glass Darkly o melhor do contributo literário de Le Fanu, decidi-me pela compra.

Uncle Silas is an intriguing novel of deception. Its narrator, a young victorian girl orphaned and lleft in the care of her sinister uncle, tells a highly charged story of intimidation, criminality, and violence. Her uncle is assisted by a boorish son and a grotesque French Governess in his attempts to seizes his ward’s fortune.

Dr. Futurity de Phillip K. Dick – Deste autor aclamado de Ficção Científica já li vários contos e O Homem do Castelo Alto , com um dos mais estranhos e indecifráveis finais que já me lembro de ter lido. Mas embora a sua técnica e estilo não primem pelo brilhantismo, as suas ideias são permeadas por uma genialidade que compensa tudo o resto. Dr. Futurity não parece ser um dos seus melhores, mas ainda assim PKD vale pela capacidade visionária e pela interrogação constante dos limites da realidade e ficção.

He had a moment of shattering, blinding terror. One minute he’d been driving along the familiar road to his city office, next he was hurtled centuries into the future. In seconds he had traversed centuries. But why had the tribesmen of the Wolf chosen him for such a grimly dangerous task? Could he – alone in a future world – tamper with the threads of destiny? Above all, was there a chance that he could escape the frightening future and find his way back to his own time?

Fiasco de Stanislaw Lem – Recentemente falecido, Lem dispensa apresentações como um dos nomes maiores do género. Solaris será a sua obra mais famosa, mas há outros que merecem igual destaque como Memórias Encontradas Numa Banheira, Viagens de Ijon Tichy e este Fiasco onde há um supercomputador chamado DEUS; um monge perturbado, em representação do Vaticano; um físico e filósofo japonês; e um jovem e destemido piloto excitado com a perspectiva de se encontrar face a face com alienígenas.

Fogo nas Profundezas do Espaço de Vernor Vinge – Infelizmente só encontrei o 2º volume da colecção Europa-América. Terei agora que ir à caça do 1º volume, mas já tinha ouvido falar maravilhas deste livro de Vernor Vinge vencedor de um Hugo em 1993 (empatou com Doomsday Book de Connie Willis). Em A Fire Upon the Deep encontramos uma space-opera recheada de superinteligências humanas, batalhas no espaço, extraterrestres e todos os ingredientes para um grande romance de ficção científica.

É verdade, já mencionei que encontrei todos estes livros ao preço de 1€ cada?

PS -> É já amanhã a abertura da Feira do Livro de Lisboa, um bom local para encontros, pôr os dedos a trabalhar à procura de antiguidades entre os alfarrabistas e comprar os livros que não comprámos ao longo do ano devido a preços excessivos. Pessoalmente, evito comprar em português devido aos preços infames praticados pelas editoras portuguesas. Ainda assim, por vezes, há oportunidades que não se podem deixar passar. Devo estar lá amanhã às 18.30 por ocasião da visita de Panos Karnezis no stand da Cavalo de Ferro. Pelo menos vou tentar. Ainda não li o livro Pequenas Grandes Infâmias mas tudo nele aponta para que seja uma surpresa muito agradável.

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A sereia

May 20, 2006 at 10:17 pm (Livros/BD/revistas, Strange Land)

Não tencionava divulgar isto tão cedo, nem nunca fui pessoa de fazer divulgações acerca de mim, mas a notícia saiu hoje no local mais inesperado. O jornal Público publicou hoje no suplemento Mil folhas uma entrevista ao Rhys Hughes e a editora Livros de Areia revelou que o próximo livro do Rhys, A Sereia de Curitiba, vai ser traduzido por aqui a vossa amiga.

Chama-se “A Sereia de Curitiba” e, de acordo com os editores da Livros de Areia, já está a ser traduzido por Safaa Dib, uma luso-libanesa que vive em Lisboa e é amiga do autor galês.

Sim, é verdade. Aceitei o trabalho há pouco tempo, mas na realidade só ontem recebi o texto definitivo da parte do Rhys.

Uma correcção apenas. Luso-libanesa dá a entender que um dos meus pais é português, o que é incorrecto. Sou libanesa, embora tenha dupla nacionalidade. Alguns diriam que sou tão portuguesa quanto um português.

Que mais há a dizer? Foi uma boa surpresa ter sido mencionada no jornal, embora me tenha sentido um pouco exposta.

Mas agora há muito trabalho pela frente.

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Lady in the Water

May 14, 2006 at 9:21 pm (Cinema e TV)

Shayamalan

O poster é tão incrivelmente belo que quase tenho vontade de não ver o filme só para que a minha imaginação possa fabricar a história da forma como quero. Já não foram poucas as vezes que Shyamalan me desiludiu. Que dizer do final imerecido de The Village que destruiu uma história, elenco e diálogos tão acima do mediano e vulgar?

Conseguirá Lady in the Water voltar a recuperar a minha confiança em Shyamalan? A resposta virá a 28 de Setembro a território nacional.

Uma pena que não exista ainda uma forma de inserir uma banda-sonora para cada post, porque senão era bem capaz de deixar a tocar a música do trailer.

Até lá, fica o magnífico rosto da ninfa a assombrar a imaginação.

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Séries memoráveis de FC&F

May 13, 2006 at 6:39 pm (Cinema e TV)

Mais do que um bom filme de cinema, aprecio uma boa série televisiva. É uma das coisas que me dá mais prazer acompanhar uma boa história todas as semanas com desenvolvimento de personagens, surpresas, e histórias que não prescindem do bom entretenimento e emoções que estão na base de qualquer ficção.

Com este post provavelmente irão perceber que tenho um gosto enorme por arte televisiva, tanto quanto arte cinematográfica. Trata-se de uma compilação minha das séries de ficção científica e fantasia que mais me marcaram dos últimos 20 anos. Com uma ou duas excepções, não incluí nada mais antigo do que eu. Mesmo com a possibilidade actual de rever clássicos através de DVDs, não é o mesmo que acompanhar uma série semanalmente e discuti-la em grupo. A maioria destas séries mencionadas passaram numa altura em que só existiam 2 canais ou 4 canais portugueses e era maior a possibilidade de vivermos as peripécias de uma série comunitariamente. De qualquer forma, não se trata de uma compilação dos melhores, mas é uma selecção guiada exclusivamente pelo meu gosto pessoal, por isso, se não virem a vossa série favorita incluída, bom… então têm os vossos próprios blogues para escreverem sobre isso.

O facto de ser o meu gosto pessoal a ditar as regras excluiu séries como First Wave, Dark Angel, Taken, Millennium, 4400, Stargate, Buffy the Vampire Slayer ou Tru Calling que nunca realmente puxaram por mim, embora cada um tenha a sua legião de admiradores. Outros não serão mencionados porque não os vi ou não me recordo deles, são os casos de Earth Final Conflict ou V. E há ainda aqueles que não sei o que pensar, se bem ou se mal, como Alien Nation.

Mas irão ver outros mencionados (sem qualquer ordem), tais como…

Twin Peaks
Twins Peaks não era apenas uma série. Era A série. E tinha um nome grande da sétima arte por trás da sua concepção, David Lynch, conhecido pelas suas incursões surreais e bizarras no cinema. Foi o responsável pela introdução de novas técnicas artísticas que elevaram substancialmente a qualidade televisiva, estabelecendo doravante uma nova visão e novas formas de fazer drama em televisão. O agente de polícia Dale Cooper é enviado à cidade ficcional de Twin Peaks para resolver o assassínio da jovem Laura Palmer. Mas o mistério em torno do crime era apenas um pretexto para Dale Cooper conhecer melhor a pequena comunidade remota que, por trás de uma aparência pacata, escondia um lado negro sombrio e perturbante (algo já explorado por Lynch em Blue Velvet). Twin Peaks poderia ter sido integrado em quase todos os géneros sem dificuldade – drama, horror, ficção cientifica, fantasia, thriller, policial, uma amostra do génio da primeira temporada. Não poderia deixar de mencionar a assombrosa banda-sonora que se tornou icónica, da autoria de Angelo Badalamenti.

Beauty & the Beast
Linda Hamilton e Ron Pearlman deram origem a um dos pares mais estranhos e cativantes na história da fantasia televisiva. Baseando-se no imortal conto de fadas adaptado para a cidade de Nova Iorque dos anos 80, encontramos a advogada Catherine Chandler que sofre uma violenta agressão às mãos de dois criminosos e é salva por uma misteriosa criatura que a leva para o subterrâneo onde habitam marginais e indivíduos rejeitados pela sociedade. O seu salvador é Vincent, um homem com rosto de leão, mas um coração de ouro. O que era maravilhoso na série não era apenas o amor forte que nem um rochedo entre a bela e o monstro, mas também a vida nos túneis, um mundo mais sábio e povoado de uma estranha beleza melancólica. Infelizmente, a série nunca mais voltou a ser a mesma com a morte da personagem de Catherine que, antes de ser assassinada, deu à luz o filho de Vincent raptado por um homem de nome Gabriel. Mesmo assim, as primeiras duas temporadas foram inesquecíveis.

beauty

The Pretender
The Pretender partia de uma premissa francamente interessante. Jarod é um génio, um rapaz isolado por uma instituição de nome The Centre que o torna alvo de uma experiência através do qual se transforma num pretender, um homem com a capacidade de se tornar em qualquer pessoa ou assumir qualquer profissão. Até ao dia em que Jarod foge do centro e parte em conhecimento de um mundo que não conhece, procurando a verdade sobre a sua família. Embora as story-lines fossem na sua maioria repetitivas e seguindo sempre a mesma lógica, era interessante o suficiente ver Jarod em cada episódio assumir uma persona diferente e constantemente ludibriar os seus perseguidores que o queriam de volta no centro. Em complemento, tínhamos uma Miss Parker determinada em vê-lo preso, inconsciente de estranhos factos em redor da sua família, e o mentor e protector de Jarod, o psicólogo Sydney. Numa fase mais tardia, houve também a introdução do perturbante Mr. Lyle, o representante de tudo o que é opressivo e cruel no mundo do The Centre.

Babylon 5
Ao contrário de muitos, eu nunca consegui nutrir um grande interesse por Star Trek (HEREGE!HEREGE!). Só me recordo de Star Trek Deep Space 9 e Star Trek Voyager, e nem uma nem outra deixaram grandes saudades. Lembro-me dos filmes que até eram interessantes, mas se havia série que realmente explorava o tema das federações galácticas com inteligência e boa dinâmica era Babylon 5. Uma estação espacial que constituía-se como território neutro e local de diplomacia nos conflitos galácticos, em Babylon 5 fervilhavam intrigas políticas e jogos de poder que tentavam a todo o custo minar a paz e prosperidade. Grandes histórias em cada episódio que não tinham medo de explorar temáticas complexas e também polémicas, funcionando também como uma reflexão da nossa própria realidade.

The Highlander
A minha segunda série favorita de todos os tempos. Primeiro vieram os filmes de Christopher Lambert que introduziram todo o conceito dos imortais e do jogo pelo qual disputavam the prize. E embora os filmes tenham o seu interesse, foi a série televisiva que fez jus ao potencial da história. Duncan Macleod, um imortal de 400 anos, mostra-se relutante em se envolver no jogo dos imortais com a suas regras específicas: defrontar-se em combate singular com um imortal até que um morra por decapitação e nunca matar um imortal em território sagrado. E o jogo deve continuar até que exista apenas um. Durante muitas temporadas, a série contou a saga de Duncan e os seus amores e desamores, os amigos e inimigos. Para adicionar um maior interesse, cada episódio continha flashbacks do seu passado. Tanto podia ser Duncan a servir como soldado na 1ª Guerra, ou a servir como actor numa companhia teatral do séc. XVII. Episódios especialmente bons foram os que envolveram a sua companheira Tessa (mais tarde morta por um bandido), mas também numa fase posterior, a presença de Methos, o imortal de 5000 anos, que foi numa das suas vidas passadas um dos quatro cavaleiros da Apocalipse. O declínio da série deu-se com a morte de Richie, um dos discípulos imortais de Duncan. Mas ficou uma série de culto com a fabulosa música dos Queen a abrir o genérico. Príncipes do Universo, sem dúvida.

Space Above and Beyond
Uma das mais inteligentes recriações da temática “guerra dos mundos” em ficção científica teve o tempo de vida equivalente a um piscar de olhos. Sofrendo do mesmo mal que Firefly, a FOX cancelou a série ao fim da primeira temporada. As influências de Joe Haldeman, Norman Mailer ou Robert Heinlein estão presentes na história de um grupo de marines no ano de 2063, uma época em que a Humanidade já dera os primeiros passos de colonização de outros planetas. Um misteriosa raça alienígena, os Chigs, atacam colónias terrestres, desencadeando a guerra total. Seguindo as vidas de cadetes que se transformam em veteranos de guerra, as histórias e sub-histórias tinham uma complexidade a anos-luz do seu tempo. Ao lado dos humanos, lutavam os In-Vitros, uma raça artificialmente criada, não sendo pouco frequentemente vítima de segregação racial. A série tinha a audácia de retratar soldados mostrando o medo, desespero, toxicodependência, instrumentalização política do exército, moral e ética subjacentes às suas vidas. Nada permaneceu sagrado para os criadores desta série, determinados a questionar e expor a actuação das tropas, tanto que a descoberta nos últimos episódios de que o inimigo contra o qual lutavam com tanta ferocidade e desprezo eram antepassados dos terráqueos destrói por completo a força das suas causas. Um dos melhores exercícios de auto-crítica americana que merecia muito mais destaque do que aquele que obteve.

SAAB

X-Files
Ainda me lembro na perfeição dos primeiros minutos do episódio piloto de Ficheiros Secretos. Foi o início de uma longa devoção da minha parte à série que me cativou de forma incondicional. Não era recomendável para uma pequena criança e tinha cenas realmente assustadoras, mas nunca foram as histórias que me prenderam, nem tão pouco a atenção dada em cada caso a freaks capazes de manifestar estranhos poderes que na maioria das vezes os destruía por completo. Era sim a fabulosa cumplicidade de Mulder e Scully, mas deixo que as palavras de um jornalista americano descrevam por mim na perfeição a relação entre o casal – what was unique was the portrayal of profoundly connected souls for whom sex was not so much undesirable as largely irrelevant. Their fierce devotion to each other and their unwavering trust was the heart of the show. A série já muito antes da saída de David Duchovny mostrava sinais de declínio na originalidade e coerência narrativa, mas ainda que tenha havido uma interessante renovação com o actor Robert Patrick, o canto do cisne já tinha soado. Mas Mulder e Scully permanecem ainda hoje como mitos.

Merlin
Por mais estranho que pareça, a história do Rei Artur nunca viu uma boa adaptação a cinema. Existe Excalibur, com os melhores diálogos arturianos, mas um filme já datado e um pouco chocho em certos momentos. Em televisão, o caso muda de figura. A série Merlin tinha um excelente casting de actores vindos do cinema, nomeadamente Sam Neill, Miranda Richardson, Helena Bonham Carter, Martin Short, Rutger Hauer, só para mencionar alguns. Em vez de se limitarem a contar uma versão da história, misturaram os melhores elementos da fantasia arturiana nas suas mais variadas versões, com uma maior inclinação para as pagãs, construindo uma série consistente e realmente apelativa às audiências. A história de Merlin e Nimue, Morgana e Mordred, Uther, Igraine e Artur nunca foi tão bonita, mostrando o declínio e desaparecimento das antigas forças da terra, dando lugar a um novo mundo do qual Merlin nunca fez parte.

3rd Rock From The Sun
São muitas as séries de humor que atingiram aclamação universal, mas 3rd Rock from the Sun era algo a roçar o genial. A série girava em torno de um grupo de quatro extraterrestres que se estabeleceram na terra como uma família, mas eram na verdade observadores dos modos de vida dos terrestres. Cada episódio mostrava como o grupo lidava com a sociedade e tentava compreender os humanos, na maior parte das vezes sem grande sucesso. No fim ficávamos a pensar quem seria mais alienígena, eles ou a Humanidade com os seus estranhos costumes e estranhas formas de relacionamento. Mas era precisamente nessa forma de questionar tudo do ponto de vista de um outsider de uma forma hilariante que assentava muito do dinamismo e frescura da série. A vida nunca foi tão estranha como em Terceiro Calhau a Contar do Sol.

Lost
E porque não me gosto de repetir, sobre Lost escrevi um texto nos Filhos de Athena.

Futurama
Embora reconheça a qualidade de uma série como Os Simpsons, o facto de se tratar de uma animação fez com que a maioria julgasse ser um produto adequado para crianças no tempo em que começou a ser exibida (inícios dos anos 90). Sendo na altura ainda muito criança para compreender a sua forte componente satírica, nunca caiu nas minhas boas graças e o sincero nojo que me inspirava Homer condenou inevitavelmente a série aos meus olhos. Mas Futurama, já numa fase mais tardia, era um produto genuíno de boa disposição e humor inteligente. Combinando histórias de sci-fi muito cool e descontraídas, com personagens maiores que a vida como Fry, o homem das pizzas congelado durante 1000 anos, Leela, uma capitã mutante e Bender, um robot demasiado humano por vezes, todos viajam no universo arriscando as suas vidas para fazerem entregas ou realizarem actos de caridade. Animação com muito absurdo, imaginação e humor ao melhor de Matt Groening.

futurama

The Storyteller
Para a minha geração, Jim Henson está ligado a boas memórias. Não só graças ao show dos Marretas, um exemplo de como a arte dos bonecos nunca morrera a favor de animação digital, mas também graças a filmes como Labyrinth e Dark Crystal. Mas o programa que me deu mais prazer foi a do velho encerrado num castelo lugúbre a contar histórias ao seu cão marreta. Recentemente tive a oportunidade de rever alguns dos episódios e constatei com agrado que envelheceram bem e ainda conservam muito da aura fantástica que permeia todas as criações Henson. Para além dos 9 episódios de The Storyteller, foram realizados alguns dedicados a mitos gregos, como Orfeu, Teseu e Medeia. Com um toque algo tenebroso e realista, The Storyteller era um mestre contador de histórias e com as suas palavras tecia verdadeiros encantamentos.

Firefly
Firefly nunca teve a pretensão de ser uma obra-prima da ficção científica que lida com temáticas perturbantes e exaustivamente filosóficas. Era sim, uma combinação de western transposto para tripulações no espaço com um conjunto de personagens a transbordarem de personalidade e carisma, envolvidos em peripécias onde não podia faltar o humor e a ideia de que tudo se irá resolver, a bem ou a mal. Cancelada pela FOX, gerou um tal grupo de fãs que se tornou possível realizar um bom filme – Serenity – a encerrar a história desta tripulação. O Capitão Malcom Reynolds, um antigo capitão de guerra do lado dos derrotados, lidera uma nave de classe firefly que transporta um grupo bem peculiar que inclui River e Simon, a dama de companhia Inara, Shepherd Book, Zoe e o marido Wash, Kaylee e Jayne. Juntos envolvem-se em negócios dúbios e salvamentos arriscados, com boas doses de piadas e situações absurdas. Em resumo, uma cowboyada no espaço imperdível.

Battlestar Gallactica
BG tem dado que falar nos últimos dois anos como uma das melhores séries de FC dos últimos tempos. Um remake da série dos anos 70, conseguiu ultrapassar o original em todos os sentidos e ainda reinventá-lo ao transformar a personagem de Starbuck numa mulher. Vi a mini-série e esta explica as origens do conflito que desencadeou a viagem da tripulação. Os humanos foram derrotados na guerra contra a inteligência artificial, e após verem a maioria das suas colónias destruídas, o comandante Adama e a presidente Laura Roslin lideram os últimos sobreviventes na busca de uma lenda, a 13ª colónia perdida, o planeta Terra. Mas enfrentam a ameaça sempre presente dos Cylons, robots que conseguem assumir a aparência humana. A série conta as aventuras e desventuras da tripulação em busca do planeta, e embora ainda não a tenha visto (já tenho os DVDs!) promete manter o espectador preso com bastante suspense, bom enredo e profundidade psicológica.

Menções honrosas

Highway to Heaven (Um Anjo na Terra)
Michael Landon foi uma das estrelas mais populares da televisão dos anos 60 a 80, graças a Bonanza, Uma Casa na Pradaria e Um Anjo na Terra. Esta última tinha uma história relativamente simples. Um anjo na terra ajudava pessoas em crise de modo a poder ganhar as suas asas. A acompanhá-lo sempre tínhamos um ex-polícia, Mark Gordon. Não era brilhante, mas para uma jovem rapariga tinha um certo apelo, pois parecia-me na altura ser feito de uma naturalidade que o tornava convicente e genuíno. Tocante por vezes, repetitivo em muitos momentos, conserva todas as qualidades e defeitos das séries do seu tempo.

Quantum Leap
É raro uma série televisiva conseguir viver através de apenas duas personagens que não sejam um casal amoroso. No caso de Quantum Leap tínhamos um cientista, Sam Beckett, que acreditava ser capaz de viajar no tempo, mas ao iniciar prematuramente uma experiência vê-se preso no tempo e a assumir a identidade de pessoas em épocas diferentes. O seu único elo de comunicação é Al, um holograma, e ao esperar que cada salto no tempo o retorne a casa e ao seu mundo, Sam ajuda as pessoas que conhece a reporem as suas vidas. Uma série amistosa, sem outras pretensões senão a de dar um bom entretenimento e Dean Stockwell e Scott Bakula sabiam como manter o espectador fiel a cada episódio.

Sliders
Sliders, embora nunca tenha sido brilhante, tinha alma. Um rapaz-génio, Quinn Mallory, e os seus companheiros viajam em cada episódio para universos paralelos, mas nunca conseguem regressar a casa. Em vez disso, vêem-se envolvidos na socidade e intrigas de cada universo, dando origem a episódios interessantes onde a História era subvertida. Bom elenco, boas histórias, e dramático quanto baste.

Captain Power and the Soldiers of the Future
Esta série merece uma menção honrosa não necessariamente pela qualidade, mas por ser a primeira série de televisão que me lembro de ver. Só me recordo de algumas imagens, não o suficiente para poder dizer do que se tratava. Uma pesquisa na net indica-me que esta série realmente existiu e não foi produto da minha imaginação. Basicamente, consistia na luta de um grupo de guerrilheiros contra poderosas máquinas maléficas que dominavam a terra no futuro. Lembro-me do entusiasmo que provocava. Um bom sinal, não?

Earth 2
Muitas séries e livros de ficção científica mencionam a colonização de outros planetas, mas Earth 2 mostrava realmente todo esse processo de habitar uma nova terra, nem sempre fácil e muitas vezes hostil. Tendo sido a raça humana forçada a viver em ambientes artificiais após a extinção da Terra, um grupo de rebeldes liderado pela capitã Devon Adair, capaz de tudo para salvar a vida do filho vítima de uma estranha doença fatal, arrisca começar uma nova vida num planeta com condições semelhantes à terra. Terão que enfrentar a animosidade da raça local e todos os perigos e obstáculos inerentes à colonização. Tinha coisas boas como más, sendo uma série equilibrada e com personagens cativantes, embora lhe faltasse um certo aprofundamento em certas matérias, nomeadamente, sobre o planeta em si. Mas confesso que não vi todas as temporadas e não sei do destino final dos colonos.

Dragon Ball Z
Agora estão todos a pensar que enlouqueci ao mencionar este programa. Tinha obviamente as suas falhas, mas é o último programa que me lembro de reunir um tal culto de espectadores em seu torno a ponto de tudo suspender a respiração só para ver o próximo episódio. Claro que cada inimigo demorava meses e meses a ser derrotado, e tinha antes que passar por uma série de transformações incríveis que só o tornavam mais e mais invencível. E perdeu-se a conta às vezes que Songuku morreu e ressuscitou. Mesmo assim, as personagens eram tão vívidas e engraçadas, assim como a interacção entre amigos e inimigos que era difícil não continuar a seguir a acção. O melhor de Dragonball terá sido desde a chegada de Vegeta e companhia ao planeta Terra, oriundos do mesmo planeta que Songuku,até à derrota de Bubu. Os episódios sobre Sel foi talvez quando a dragonball mania atingiu o pico. Pessoalmente, gostava muito também da relação afectuosa (ou não) entre Vegeta, Bulma, Trunks, Sogohan, Kika e Songuku, assim como outros. Que atire a primeira pedra aquele que nunca viu Dragon Ball.

DBZ


Gostaria de ter visto, mas ainda não tive a oportunidade:

Dr. Who
The Prisoner
Carnivále
Conan, o Rapaz do Futuro
Farscape


De evitar

Batman
Embora esta versão venha dos longínquos anos 60, houve tempos em que foi reexibida no canal 2. É um facto da vida que Batman perdeu qualquer credibilidade como cavaleiro das trevas graças a essa adaptação dolorosamente má e francamente ridícula. Nos anos 80, houve um revivalismo do fenómeno Batman graças ao artista Frank Miller, Alan Moore e os filmes de Tim Burton que fizeram esquecer essa imagem kitsch e redutora, voltando a conferir ao super-herói um estatuto e uma ambivalência à altura da sua figura de homem morcego.

The Flash
Quando o mundo ainda não tinha sido invadido pelas hordas de super-heróis adaptados para o cinema, existiu The Flash. Baseado na banda desenhada do mesmo nome, contava as aventuras de um homem com o poder de se mover a uma velocidade que desafia as leis da física. Mesmo sendo pequena na altura em que foi exibida, conseguia perceber como era incrivelmente repetitiva e aborrecida.

Lois & Clarke
Eu devia ser muito nova quando via isto, e já então na minha tenra idade considerava a série detestável. Sou só eu a achar a história do Lois & Clarke o maior aborrecimento e parvoíce à face da terra?

Smallville
Eu nunca entenderei o fascínio americano por um dos super-heróis simplesmente mais lineares e ínsipidos da história da BD. Como se já não fosse mau o suficiente recriar ad nauseam as aventuras de Clark Kent e Lois Lane na vida adulta, temos direito a assistir aos anos da adolescência. Fraco como tudo em produção e em histórias, embora tenha um elenco credível.

Brumas de Avalon
Embora não sejam das minhas obras favoritas a fantasia, o quarteto de Marion Zimmer Bradley terá os seus pontos fortes, assim como os pontos fracos. O primeiro – Lady of the Lake – tem um ambiente mágico bastante forte e verosímil, emoções fortes e todos os ingredientes de sucesso, mas tentar condensar em 4 ou 5 horas uma saga de 4 livros é desperdício de tempo e dinheiro. Acabou por ser uma adaptação insípida a incidir nas cenas mais banalizadas da saga arturiana, sem acrescentar nada de novo ao novelo de adaptações infernalmente românticas e chochas sobre o Rei Artur.

mists

Hercules
Percebemos sempre que alguma coisa cheira mal em séries históricas ou mesmo de fantasia quando os actores e o mundo retratado conservam os tiques, maneirismos, linguagem do seu próprio tempo. Tal coisa arrasa qualquer verosimilhança de cenário, e impossibilita uma suspensão de descrença necessária para acreditar em qualquer história que se preze, e ainda mais uma história da mitologia clássica como Hércules. Hoje considero Hercules: The Legendary Journeys como o pai de uma tradição de séries impressionantemente más e americanizadas, mas incrivelmente populares. E é a Hércules que temos que agradecer o imortal spin-off … Xena, the Warrior Princess.

Andromeda
Começo a detectar um padrão aqui: tudo o que envolve Kevin Sorbo, o actor de Hércules, é mau. A história não tinha nada de novo em relação ao habitual tema de uma tripulação a viajar no espaço liderada por um capitão carismático quanto baste. Fraquita.

Xena, the Warrior Princess
Xena é daqueles fenómenos da nossa cultura tão estranhos e incompreensíveis que deveriam dar origem a teses e mais teses de mestrado. Uma figura icónica da cultura pop dos anos 90, mil vezes parodiada ou homenageada, a série era na verdade bastante má, embora admita que era mais interessante a personagem de Xena do que a de Hércules. Uma antiga vilã que se decidiu redimir de um passado de guerra e crime, Xena revolucionou o tratamento das personagens femininas, não só a nível de acção heróica, como também sexualidade. Uma pena que estivesse ao nível da série Hércules, mas mesmo a debilidade das histórias e concepção não impediu a fama universal de Xena que, queira-se ou não, é fortíssima.

Dune
Dune é uma das minhas obras de eleição, o que só me torna especialmente exigente em relação às adaptações tanto cinematográficas, como televisivas. Os primeiros três livros (são seis) decorrem em torno da figura messiânica de Muad’Dib ou Paul Atreides e são reminiscentes da história do profeta Maomé e da ascensão das tribos do deserto que, com o tempo, tornaram-se implacáveis guerreiros, paladinos da islamização. A cultura Fremen criada por Frank Herbert bebe muito da cultura árabe e das tribos berberes nómadas do deserto, mas essa é apenas uma porção de um universo ficcional infinitamente rico onde a ecologia, filosofia, misticismo, ficção científica são elementos que desencadeiam um jogo político e social denso, mas também profundamente absorvente. Por consequência, não existe até à data nenhuma adaptação satisfatória de Dune. Nem sequer a versão de David Lynch. Tentar explorar o universo Dune em algumas horas é o mesmo que tentar conter a água de um lago nas mãos.

Earthsea
Não. Pensando duas vezes, não vou falar desta série. EVITEM A QUALQUER CUSTO! Se já sou exigente com Dune, sou EXTREMAMENTE exigente com Earthsea. Mau e mau, é só o que tenho a dizer.

And that’s all, folks!

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Hello from planet Sagan!

May 10, 2006 at 10:44 am (Strange Land)

Isto não podia passar sem menção.

Nick Sagan, um dos escritores mais cool que já tive o prazer de conhecer, e não estou a dar graxa pois digo isto com toda a sinceridade que me é possível, irá lançar o livro o último volume da sua trilogia, Everfree, a 18 de Maio, encerrando-se assim a saga que começou com Idlewild e Edenborn, já publicados pela Presença com os títulos Realidade Virtual e Paraíso Virtual.

Por ocasião do lançamento que está para breve, o Nick concedeu uma entrevista à Scifi.com, o site do Sci-Fi channel, e numa completa surpresa para mim, o entrevistador perguntou-lhe sobre a sua visita a Portugal. Leiam por vocês mesmo a opinião com que ele ficou da viagem.

Idlewild and Edenborn have been translated into Portuguese, and you traveled to Portugal in November of last year for the Fórum Fantástico. Do you have a large following there? And what did you think of your travels? Have you done much other traveling?

Sagan: I’m still stunned by the trip to Portugal. There’s a strange feeling of coming full circle. In 2003 I was an unpublished novelist, and one of my favorite authors, Neil Gaiman, was reading Idlewild in Portugal. That alone was amazing. But in 2005 for my books to be translated into Portuguese and me flown out there to take interviews with the Lisbon media and speak with Portuguese fans? If you’d told me that back when I was writing Idlewild, I wouldn’t have believed it.

Everyone in Portugal treated me with such kindness and hospitality. I can’t possibly say enough about what a great time I had. Lisbon is a beautiful city, and I immediately fell in love with the monuments to exploration, the fado music, the coffee and the beer. I’m very grateful to my publishers, Editorial Presença, and to Rogério Ribeiro, who organized the convention. I’d love to go back sometime soon, hopefully with a better command of Portuguese.

Melhor do que isto seria difícil. Elogiou o país, a cultura, as pessoas, a convenção e o Rogério ainda foi mencionado (e o link à página do fórum foi inserido)!

É uma simpatia de pessoa e todos os que tiveram a oportunidade de conhecê-lo ou falar-lhe descobriram isso. E não vou mentir, É CLARO que esta publicidade é óptima para nós. Estas coisas podem servir como cartas de recomendação a outras personalidades do meio e faz com que o Fórum Fantástico entre no mapa das convenções. Torna-se muito mais fácil para outros escritores aceitarem o nosso convite, sabendo que um seu colega recomenda. E é estranho, mas estas coisas têm uma forma de se saberem e espalharem, mesmo que ninguém leia a entrevista.

É gratificante ver um longo trabalho recompensado. Não é, Rogério?

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Quando o cinema e a literatura se tornam um só

May 6, 2006 at 1:15 pm (Cinema e TV, Livros/BD/revistas)

The Guardian colocou ontem online a sua eleição dos cinquenta melhores filmes adaptados de livros. Curiosamente, ou talvez não surpreenda ninguém, alguns títulos significativos da lista se enquadram no âmbito da FC&F. Transcrevo aqui a lista, e aproveito para deixar o link à notícia.


1984 (Michael Radford, 1984)
A Clockwork Orange (Stanley Kubrick, 1971)
Alice ( Jan Svankmajer, 1988)
American Psycho (Mary Harron, 2000)
Apocalypse Now (Francis Ford Coppola, 1979)
Blade Runner (Ridley Scott, 1982)
Breakfast at Tiffany’s (Blake Edwards, 1961)
Brighton Rock (John Boulting, 1947)
Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005)
Catch-22 (Mike Nichols, 1970)
Charlie and the Chocolate Factory (Tim Burton, 2005)
Dangerous Liaisons (Stephen Frears, 1988)
Devil in a Blue Dress (Carl Franklin, 1995)
Doctor Zhivago (David Lean, 1965)
Empire of the Sun (Steven Spielberg, 1987)
Fight Club (David Fincher, 1999)
Get Shorty (Barry Sonnenfeld, 1995)
Goldfinger (Guy Hamilton, 1964)
Goodfellas (Martin Scorsese, 1990)
Jaws (Steven Spielberg, 1975)
Kes (Ken Loach, 1969)
LA Confidential (Curtis Hanson, 1997)
Lolita (Stanley Kubrick, 1962)
Lord of the Flies (Peter Brook, 1963)
Oliver Twist (David Lean, 1948)
One Flew over The Cuckoo’s Nest (Milos Forman, 1975)
Orlando (Sally Potter, 1992)
Pride and Prejudice (Joe Wright, 2005)
Rebecca (Alfred Hitchcock, 1940)
Schindler’s List (Stephen Spielberg, 1993)
Sin City (Frank Miller & Robert Rodriguez, 2005)
Tess (Roman Polanski, 1979)
The Day of the Triffids (Steven Sekely, 1962)
The English Patient (Anthony Minghella, 1996)
The French Lieutenant’s Woman (Karel Reisz, 1981)
The Godfather (Francis Ford Coppola, 1972)
The Hound of the Baskervilles (Terence Fisher, 1959)
The Jungle Book (Wolfgang Reitherman, 1967)
The Maltese Falcon (John Huston, 1941)
The Outsiders (Francis Ford Coppola, 1983)
The Prime of Miss Jean Brodie (Ronald Neame, 1969)
The Railway Children (Lionel Jeffries, 1970)
The Remains of the Day (James Ivory, 1993)
The Shawshank Redemption (Frank Darabont, 1994)
The Spy Who Came in From the Cold (Martin Ritt, 1965)
The Talented Mr Ripley (Anthony Minghella, 1999)
The Vanishing (George Sluizer, 1988)
To Kill a Mockingbird (Robert Mulligan, 1962)
Trainspotting (Danny Boyle, 1996)
Watership Down (Martin Rosen, 1978)

No geral, é uma lista satisfatória, se bem que não vi alguns dos filmes ou não li os livros que lhes deram origens. Tenho pena de não ter visto ser considerado Oscar e Lucinda de Gillian Armstrong baseado no livro de Peter Carey. Deve ser um dos filmes mais injustamente esquecidos do final da década de 90. Estranho também a omissão de O Carteiro de Pablo Neruda baseado no livro de Antonio Skarmeta, e embora não tenha lido o livro, afiançam-me de que o filme conseguiu superá-lo. Mas a omissão mais flagrante e imperdoável de todas é a de Cyrano de Bergerac de Jean Paul Rappeneau, baseado na peça de Edmond Rostand. É de culpar a tradicional hegemonia britânica e americana nestas listas que desconsidera, sem desculpas, outras nacionalidades.

Mas enfim, fazendo vista grossa a esse facto, não queria deixar de fazer alguns comentários a certos filmes.

1984 de Michael Radford, baseado no livro de George Orwell
Este é um caso paradoxal. O filme respeita integralmente o livro, e é talvez das adaptações mais fiéis que já tive oportunidade de ver e, contudo, falha redondamente em transmitir a mesma dinâmica que move a narrativa de Orwell. Tornou-se um filme cinzento, deprimente, aborrecido, miserável. Dir-me-ão que é mesmo disso que se trata o livro. Mas se é assim tão deprimente e negro, o que faz um leitor continuar a virar as páginas vorazmente? Michael Radford tentou fazer uma boa homenagem, e o que conseguiu foi transmitir uma adaptação competente, mas seca. Fiel, mas insípida.

Lord of the Flies de Peter Brook, baseado no livro de William Golding
Teria qualquer outro realizador sem ser Peter Brook sido capaz de expor o coração das trevas por trás da face de cada homem, mesmo sendo este homem não mais do que um rapaz aparentemente inocente? Mais de cinquenta anos depois, O Deus das Moscas encontra ainda perturbantes ecos na actualidade e não terá certamente sido ignorado pelos criadores da série Lost que já deixaram no ar várias referências.

Blade Runner de Ridley Scott, baseado no livro de Phillip K. Dick
As ovelhas não terão a importância no filme que têm no livro de Phillip K. Dick, mas está la a complexidade temática e toda a ambiência futurista noir que tornou esta obra de Ridley Scott objecto de culto para gerações posteriores. Terá o homem o direito de negar humanidade à inteligência artificial que criou? Pode um deus virar a face à sua criação e aos seus apelos por uma melhor vida?

Empire of the Sun de Steven Spielberg, baseado no livro de J. G. Ballard
Em décadas passadas, o seu autor foi (e ainda é) talvez o mais aclamado autor de ficção científica, embora hoje se aventure por outros géneros. James Ballard ainda detém notoriedade mundial mais devido à sua biografia dos anos de guerra e detenção que foi forçado a suportar em Shangai na adolescência, do que propriamente pelos romances controversos e viscerais que levaram à criação de uma nova palavra “Ballardian”. Spielberg no seu melhor deixou que o jovem rapaz contasse a sua história de uma forma majestosa e tocante.

Orlando de Sally Potter, baseado no livro de Virginia Woolf
Quando o modernismo veio, a literatura nunca mais voltou a ser a mesma. Estabeleceu novas vozes e novas direcções nunca antes experimentadas. O ar andrógeno de Tilda Swinton encaixa que nem uma luva neste filme que é, na realidade, uma história sobre o amor entre mulheres. Mas também ele é povoado de tons fantásticos, ao descrever a vida transsexual da personagem principal ao longo de 500 anos, desde o reinado isabelino até ao séc. XX, permitindo a Woolf escrever sobre a nova mulher do seu tempo.

Sin City de Roberto Rodriguez baseado na BD de Frank Miller
Odeie-se ou ame-se o filme, Sin City de Rodriguez, baseado nos comics de Frank Miller, conseguiu transpor o mundo gráfico da BD para o ecrã. A cidade do pecado fervilha de personagens entregues a dissipação, crime e desejo de vingança, e graças ao seu visual estilizado conquistou audiências e despertou o público para o potencial da Banda Desenhada adulta.

The Day of the Triffids de Steven Sekely, baseado no livro de John Wyndham.
Se esta é a versão que penso que é, my god. Não só é horrível, mesmo dando desconto ao facto de ter sido realizado nos anos 60 (mas também 2001: Odisseia no Espaço foi realizado nos anos 60), simplesmente não faz jus ao livro de maneira nenhuma. Embora não seja tão convicente como outras obras de literatura FC distópica, O Dia das Trífides de Wyndham contém algumas questões relevantes nos tempos actuais, nomeadamente, a cegueira universal que poderia ser entendida num sentido mais metafórico, conduzindo ao desmoronar de uma sociedade ainda na alvorada do verdadeiro conhecimento e civilização.

Já distanciado do fantástico, não posso deixar de expressar o meu espanto pela inclusão de Pride and Prejudice, versão de 2005, baseado no livro de Jane Austen. Se se esperava uma maior exigência da parte das ilhas, habituados a um certo rigor e excelência de adaptações históricas e literárias, maior é a surpresa por este filme ter recebido críticas positivas. Não sei o que será pior: o pessimo elenco, à excepção de Matthew Macfadyen, ou o completo desprezo pelas convenções sociais da época. Mas sobre isto, escrevi um texto mais aprofundado por altura da estreia do filme e podem lê-lo aqui.

Apocalypse Now de Coppola, baseado na obra de Joseph Conrad.
Em anos mais recentes, a obra de Conrad tem sido reavaliada a uma luz que considero redutora e castradora do potencial e profundidade da narrativa de Conrad. Acusada de racismo e de reinforçar os valores colonialistas e imperialistas britânicos (muito graças ao escritor nigeriano Chinua Achebe, do qual discordo totalmente), Conrad, através de Marlow, deixa o testemunho das imensas atrocidades de uma época que devora o coração e a sanidade mental dos homens, e fá-los ultrapassar as fronteiras da sua condição e ir a um ponto sem retorno. Coppola entendeu isso e adaptou o livro ao cenário da guerra do Vietname. De modo nenhum isso afecta a adaptação, pois a viagem pelo rio acima continua ainda a exprimir todo o horror.

Tess de Roman Polanski, baseado na obra de Thomas Hardy
Existiu alguma vez uma história tão trágica e comovente como a de Tess of the D’Urbervilles? Como poderia a sua beleza e pureza resistir a um tempo feito de opressão e mentes corruptas que a esmagam com a força do desejo e ambição masculinos? Nastassja Kinski é memorável no papel de Tess, com a frescura e timidez certas que tornam este filme uma obra-prima tão intemporal quanto o livro que lhe deu origem.

Rebecca de Alfred Hitchcock, baseado no livro de Daphne du Maurier
Há mais de sessenta e cinco anos, Hitchcock realizou uma verdadeira obra-prima sobre a sombra de uma mulher na relação de um casal recém-casado. Sou uma grande admiradora de Joan Fontaine, e ler o livro não é tão satisfatório quanto ver o filme e o gradual desenlace do mistério que rodeia Rebecca. O ambiente sombrio e gótico, os twists na história, o elenco secundário ao nível do desempenho de Fontaine e Laurence Olivier, tudo contribui para o fabrico de uma pérola do seu tempo.

The English Patient de Anthony Minghella, baseado no livro de Michael Ondaatje
Se eu não ler o livro antes de ver o filme, é provável que a obra literária perca imenso do seu valor perante os meus olhos. E caso seja um excelente filme, o livro está condenado. Eu deveria ter tentado ler The English Patient antes de ver o filme. E o que aconteceu foi não querer estragar a visão cinematográfica que se tornara quase perfeita e sagrada para mim. A prosa de Ondaatje terá certamente o seu valor, mas o que Minghella fez foi um autêntico monstro que adquire vida própria em relação ao seu criador. O drama de um paciente moribundo, que nem inglês é, ao recordar o amor que viveu e perdeu durante os anos da guerra, é tão eterno como as areias do deserto cujas imagens e beleza assombram o ecrã.

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Edições de coleccionador

May 4, 2006 at 5:14 pm (Livros/BD/revistas)

Descobri hoje que tenho uma edição relativamente preciosa de um dos livros da série A Song of Ice and Fire de George R. R. Martin. Pelo que vi indicado num blog de coleccionador, a minha 1ª edição inglesa hardcover da Voyager de A Clash of Kings vale cerca de 300 a 500 dólares.

A Clash of Kings:
-UK First Edition hardcover, Voyager — 300-500 dollars

Martin

Mais espantoso se torna o facto de que a comprei por uns meros 5 euros na FNAC do Chiado há 3 anos. A fama do autor já tinha chegado ao meu conhecimento e nem pensei duas vezes em comprar uma hardcover tão barata. Estava num monte de livros no chão e eram sobras de colecção que a loja achou por bem livrar-se através de “preços vermelhos”.

Encomendei a edição normal de A Game of Thrones de modo a poder iniciar-me na história. Depois foi só esperar e ler. Hoje Martin está para mim no panteão dos deuses da escrita, seja em que género for.

Foi recentemente lançado o Feast For Crows, o 4º e muito aguardado volume da série, em que Martin se viu forçado a retirar alguns pontos de vista de personagens fulcrais à história de modo a não ter que publicar um livro desumanamente longo. Foi uma decisão arriscada a de remeter certas personagens para o próximo livro A Dance with Dragons, tão só porque torna o 4º livro inevitavemente incompleto e, diria até, mutilado. Falta-lhe clímax, e essa falta de clímax foi compensada com recurso à estratégia de cliffhangers por parte do autor, que eu apontaria como tendo sido usada em excesso.

Mesmo assim, Martin não abdica de uma qualidade narrativa e estilística intocável, mas torna-se óbvio que A Feast nunca será tão satisfatório quanto os livros que o precedem. É natural, sendo um livro incompleto e que ainda tem o incoveniente de acrescentar novas personagens e respectivos pontos de vista. A Storm of Swords, o terceiro, e talvez o melhor livro que já me foi dado a ler em high-fantasy, capaz de gerar uma autêntica tempestade de emoções fortes no leitor, eleva a fasquia de tal modo no género que pode-se dizer que existe um antes e um depois de ASoS. A crueldade de alguns dos acontecimentos deste livro tem um impacto devastador no leitor e então não restam dúvidas de que Martin é um deus da sua criação reminiscente dos velhos deuses impiedosos de uma Antiguidade esquecida.

Há que atentar também no facto de que a própria história de A Feast for Crows pressupõe uma acalmia depois da violência da tempestade. Os ventos de guerra fustigaram sem misericórdia os povos e nobres das grandes casas, transportando nas suas asas os corvos da tormenta, e tudo o que resta é tentar sobreviver numa terra que perdeu rumo e liderança. É violento, mas a um patamar mais individual do que propriamente em larga escala. E é um livro que fervilha de uma demência que quebra lentamente indivíduos fragilizados pela guerra, morte e lutas por poder.

Eu gostei do livro, tão só pelos diálogos, embora admita que tem algumas fraquezas como o excesso de novas personagens que não são assim tão relevantes quanto isso, e alguns capítulos em que se vê um claro arrasto, podendo serem contados em muito menos páginas. Mas é só com a leitura de A Dance with Dragons que poderei avaliar melhor. Aliás, é nesse mesmo que voltamos a ter sinais de Tyrion Lannister e Daenerys Targaryen, já unanimamente eleitos como as personagens mais fascinantes da saga.

Tenho a ideia de escrever textos mais detalhados sobre cada um dos livros, mas sem querer entrar em spoilers.

O site oficial do autor indica que estará presente em Espanha, em 2008, por ocasião da Semana Negra, nas Astúrias. Se tudo correr bem até lá, conto marcar presença. E quem sabe, levar comigo uma certa hardcover para ser autografada…

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Beowulf – O poder literário de uma lenda antiga

May 1, 2006 at 10:27 pm (Livros/BD/revistas)

Neil Gaiman chama a atenção no seu blogue para um artigo do The New York Times sobre a crescente atenção mediática do poema Beowulf que nos últimos dois anos já sofreu não menos do que cinco adaptações, em cinema, ópera e musical. Irei prestar especial atenção à versão nórdica de Beowulf & Grendel do realizador Sturla Gunnarsson que me pareceu recriar com grande beleza as raízes nórdicas do poema anglo-saxónico.

beowulf

Como se explica que um poema anónimo escrito há mais de mil anos detenha hoje um tão grande poder apelativo?

Escrito em Inglês Antigo, tem raízes numa literatura oral que terá sido transmitida de geração em geração até ao registo escrito possivelmente por um monge que introduziu referências cristãs. Ainda que a língua seja o Inglês Antigo, conta as histórias das tribos escandinavas e uma sociedade guerreira germânica onde ainda era forte a mentalidade pagã, sendo a força e bravura características que distinguiam o guerreiro do comum dos mortais.

Mas é talvez graças a uma soberba tradução para inglês moderno do grande poeta irlandês Seamus Heaney que Beowulf saiu na última década do confinamento académico (o próprio Tolkien foi um dos estudiosos mais destacados desta obra) e saltou para a primeira linha de grande saga heróica e épica na melhor tradição das epopeias da Antiguidade, em especial, a Íliada. É essa a tradução disponível na Norton Anthology of English Literature e a recomendada a todos os estudantes de letras ou curiosos.

Através do talento póetico de Seamus Heaney conseguimos apreciar o poder narrativo que invoca uma sociedade pagã onde os homens guerreiros lutavam contra velhos poderes da terra e forças da natureza conhecidas pela sua ferocidade sanguinária. Monstros e dragões são obstáculos a Beowulf e terá que lutar contra essas criaturas míticas se quer conquistar honra e valor. Mas se o apelo deste poema anglo-saxónico estende-se até hoje deve-se à violência do seu tempo que parece ecoar a violência dos tempos actuais e não é com indiferença que consideramos a bravura dos homens face à uma natureza e a um mundo hostil.

Quando o hall do grande rei Hrothgar é ameaçado por uma criatura de nome Grendel que mata e devora homens a meio da noite, Beowulf proclama frente ao seu anfitrião que irá livrar o povo da crueldade de Grendel. E com efeito o guerreiro inflige uma ferida mortal ao monstro que foge do hall com a vida prestes a esgotar-se.

Mas na noite seguinte, a comunidade é atacada por uma ainda mais poderosa força, a mãe de Grendel que procura por vingança e sacia-se com o sangue de um dos guerreiros mais valorosos de Hrothgar. Seguem a criatura até ao seu covil num lago e nesse local ocorre a segunda batalha de Beowulf, em que põe fim à vida da besta.

Conquistada a fama e nome para todo o sempre, passam muitos anos abastados para Beowulf até que um novo mal ameaça as suas terras e o povo, o fogo de dragão. E já no seu crepúsculo, o guerreiro prova mais uma vez o seu valor e ganha um lugar merecido nos grandes banquetes de Valhalla (embora o relato tenha sido cristianizado). Ele mata o dragão, mas é mortalmente ferido e nesse momento terminam os grandes feitos de Beowulf.

Se nos esquecermos do facto de que se trata de um poema milenar, quase poderíamos acreditar na possibilidade de estarmos perante um texto de high-fantasy (fantasia épica). Tem sido longo o debate entre os apreciadores de literatura fantástica a relevância da inclusão ou não de epopeias da Antiguidade nas listas de leitura obrigatória do género. Se actualmente poderíamos considerá-los realmente como produtos rotulados de fantasia épica, o mesmo poderia ser dito dos povos que viveram na época e acreditavam nas histórias dos deuses e nos combates singulares entre heróis provocados por uma mulher que facilmente devastava com a sua beleza um Império? Eles acreditavam que isto era, na realidade, História e não fantasia. É o mesmo que dizer que os mitos que constituem as bases das nossas religiões são fantasia, seja épica ou não. Quando na verdade são alegorias ou construções metafóricas, mas nunca histórias que devem ser interpretadas de forma literal.

É através do poder simbólico das histórias que se atinge o coração do crente. E os monges desses tempos entenderam isso melhor do que ninguém, ao registarem para a posteridade as lendas antigas. Beowulf é um poderoso símbolo de força e bravura perante um mundo cruel. É uma glorificação do poder primordial e visceral do Homem e um sobrevivente durante séculos de guerra e civilização. Se conseguirmos apreciá-lo, então saberemos apreciar também o ritmo primordial que bate no coração do nosso mundo.

Deixo aqui um excerto da recta final do poema.

Inspired again
by the thought of glory, the war king threw
his whole strenght behind a sword stroke
and connected with the skull. And Naegkling snapped.
Beowulf’s ancient iron-gray sword
let him down in the fight. It was never his fortune
to be helped in combat by the cutting edge
of weapons made of iron.
(…)
Then the bane of that people, the fire breathing-dragon,
was mad to attack for a third time.
When a chance came, he caught the hero
in a rush of flame and clamped sharp fangs
into his neck. Beowulf’s body
ran wet with his life-blood.
(…)
Once again the king
gathered his strenght and drew a stabbing knife
he carried on his belt, sharpened for battle.
He stuck it deep in the dragon’s flank.
Bewulf dealt it a deadly wound.
But now for the king
This would be the last of his many labors
and triumphs in the world.

Extraído da Norton Anthology of English Literature, Vol. 1, 7th Edition
tradução de Seamus Heaney

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