O Nome do Vento de Patrick Rothfuss

August 30, 2009 at 10:56 am (Livros/BD/revistas)

Nota: Para quem tenciona ler este livro, aviso que a crítica contém alguns spoilers, mas podem ser lidos os primeiros três parágrafos e o último.

Taborlin could see the sky and breathe the sweet spring air. He stepped to the edge, looked down, and without a second thought he stepped out into the open air. So Taborlin fell but he did not despair. For he knew the name of the wind and so the wind obeyed him.


Esta é apenas um dos mitos contados no mundo criado por Patrick Rothfuss no seu primeiro livro de fantasia, The Name of the Wind, o primeiro volume da Crónica do Regicida, que li em inglês. Muitas histórias são contadas em estalagens e aldeias, cidades e casas de nobres sobre grandes feitos em tempos onde a magia era poderosa. Transmitidas oralmente, tornam-se matéria de lendas, esquecida a verdadeira história, permanecendo apenas o poder da magia.

Há um amor pela arte de contar histórias presente no livro, a tal ponto que esse amor se irá tornar o centro nevrálgico que irá desencadear a inteira trilogia. A escrita está ao nível do melhor que se tem feito no género e estamos perante um autor que domina muito bem a linguagem, e claro que isso se torna essencial para obter uma fantasia verosímil, uma suspensão de descrença que nos permita ser envolvidos pela história.

Numa estalagem num fim do mundo, homens reúnem-se para contar os rumores de tempos negros e estradas assoladas por ladrões e criaturas demoníacas. Há um ouvinte atento a estas histórias, o estalajadeiro, um homem aparentemente inofensivo mas na verdade nenhum dos homens que bebe da sua cerveja desconfia que ele é uma das próprias lendas que é contada de casa em casa.

Kvothe é o seu verdadeiro nome e como ele próprio confessa I have stolen princesses back from sleeping barrow kings. I burned down the town of Trebon. I have spent the night with Felurian and left with both my sanity and my life. I have talked to Gods, loved women, and written songs that make the minstrels weep. My name is Kvothe. You may have heard of me.

Mas porque é que um homem de tal fama e proezas se esconderia como estalajadeiro num canto esquecido do mundo? Após alguns capítulos em que nada é revelado, eis que finalmente conhecemos a figura do cronista que, após ouvir alguns rumores, decidiu partir em busca de Kvothe para conhecer a verdadeira história da sua vida.

Mesmo perante a evidência de tempos conturbados, o cronista encontra milagrosamente (demasiado milagrosamente para o meu gosto) Kvothe uma noite na estrada e aí começa a relação entre o cronista e o mago que irá revelar toda a sua história em três dias.

O Nome do Vento relata apenas o primeiro dia, um dia em que iremos ouvir a narração de Kvothe acerca da sua infância como Edema Ruh, um povo versado nas artes performativas e que viajam de cidade em cidade apresentando peças de teatro ou participando em festivais, muito à semelhança das companhias teatrais isabelinas patrocinadas por um mecenas.

É um início muito auspicioso para a história de Kvothe, e sem dúvida uma das melhores partes do livro em que a criança muito inteligente e curiosa é iniciada nos segredos de magia através de um velho arcanista, ao mesmo tempo que desenvolve um amor por teatro, música e viagens.

Ao lermos as histórias contadas pelo arcanista ao rapaz, começamos a ter uma perspectiva mais abrangente do mundo de Rothfuss e é impossível não notar a profunda influência do universo de Earthsea de Ursula Le Guin. Tal como em Terramar, o poder reside no domínio dos nomes. Saber o nome do vento é conquistar a sua obediência, mas descobrir o nome das coisas é a mais difícil das artes embora Kvothe demonstre uma excepcional habilidade para o Arcanum mesmo em tenra idade.

Há uma clara vontade da parte do autor em mostrar-nos o mito em torno da figura de Kvothe, da mesma forma que Ged era um dos maiores arquimagos da história de Terramar. Mas Ursula Le Guin era excepcional no feito de contar a história de Ged desde a sua infância e adolescência até à idade adulta, revelando a sua faceta íntima, mas ao mesmo tempo preservando o mito. Mas não me quero antecipar em revelar aquele que foi um dos pontos negativos do livro para mim.

Após uma tragédia, Kvothe irá aprender da forma mais dura a sobreviver sozinho nas ruas da cidade como pedinte. São três anos da sua vida narrados em algum detalhe, mas que não deixam de ser interessantes de seguir, mais não seja pelos mitos contados sobre os Chandrian, figuras misteriosas demoníacas que se crê nunca terem existido…

Finalmente dá-se a entrada na Universidade, também um dos momentos mais fascinantes do livro e não pude deixar de reparar nas semelhanças em certos aspectos com a escola de feiticeiros de Ged em Terramar. A vida de Kvothe na Universidade irá dominar a segunda metade do livro. E aqui o autor começa a derrapar naquilo que até então tinha sido uma narrativa muito boa.

A aprendizagem na universidade está pejada de obstáculos e perigos: desde a rivalidade da parte de um herdeiro de uma casa nobre, passando pela extrema pobreza de Kvothe, tendo que inventar estratégias para pagar as propinas, até ao facto de o seu génio e talento lhe terem angariado uma reputação logo desde o primeiro dia de aulas que lhe trouxe inimizades, mas também fervorosa admiração.

Tudo contado em detalhe, extremo detalhe. Algumas partes alongam-se em demasia, outras são intensas e bem conseguidas como a cena em que Kvothe prova o seu talento musical com a flauta, mas no geral revela-se uma descrição demasiado imersa em pormenores que tornam Kvothe ordinário (por vezes simplório), arruinando um pouco do seu mito. Nunca senti nas aventuras de Ged em Earthsea que a personagem se tornara banal. Havia sempre algo profundo e intocável em Ged que permaneceu até à sua velhice, uma fonte de poder que o tornava inalcançável. Até mesmo na personagem de Raistlin do universo Dragonlance era possível sentir isso.

Mas Kvothe, que supostamente aprendera linguagens arcaicas em dois dias, não é mais do que um rapaz extremamente inteligente, imensamente ingénuo em relação a raparigas, e determinado a sobreviver e alcançar a verdade sobre os Chandrian.

E é com infelicidade que constatamos que Rothfuss tomou a decisão de relegar as grandes proezas de Kvothe para o segundo livro. A personagem avisou-nos desde o início que fora expulsa da Universidade, mas Rothfuss nem sequer conta o episódio da expulsão neste livro, optando por inserir capítulos desnecessários, aborrecidos e supérfluos sobre a luta de Kvothe com um dragão junto com a rapariga que ama, Denna. E assim termina o livro a saber a pouco, demasiado a pouco, depois de uma primeira metade tão auspiciosa. As últimas duzentas e cinquenta páginas são estranhamente as mais pobres do livro.

Terminamos o primeiro dia da crónica sabendo que Kvothe finalmente é aceite pelo Mestre dos Nomes para iniciar a sua aprendizagem na arte dos nomes.

Quanto às personagens secundárias, nenhuma se revelou grandemente inspiradora sendo Bast, o companheiro demónio de Kvothe, o mais intrigante de todos. Denna, a rapariga protagonista, nunca verdadeiramente empatiza com o leitor, tendo recebido uma descrição algo unidimensional. Nenhum dos seus motivos ou razão para as suas acções foi revelado; é uma rapariga bonita, cruel e selvagem e isso parece justificar tudo. Engraçado como todas as raparigas no livro de Rothfuss são bonitas.

Tenho que confessar que li o livro por curiosidade, uma vez que a editora Gailivro irá lançar a edição portuguesa em finais de Setembro. A recepção muito positiva que o livro tem tido levou-me a tentar descobrir se estava perante mais uma grande fantasia épica. E embora O Nome do Vento não tenha alcançado para mim a alta esfera onde se encontram as grandes obras de fantasia, é ainda assim um primeiro romance a transbordar de talento e aguardemos que o segundo livro revele as histórias favoritas de Kvothe. E esperemos que também se tornem as nossas histórias favoritas.

O segundo e terceiro livros ainda se encontram a ser escritos.

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Deixa-me entrar

August 26, 2009 at 9:38 pm (Livros/BD/revistas)

Porque é que este livro ainda não existe entre nós disponível numa edição portuguesa? Ia jurar que já tinha sido traduzido, mas ainda nada foi anunciado.

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Conhecido pelo título inglês Let me In, a obra do sueco John Ajvide Lindqvist tornou-se uma das maiores revelações dos últimos anos na literatura de horror. Curioso como os suecos se têm revelado como uma força literária a não menosprezar nos últimos tempos.

Esqueçam tudo o que sabem sobre romances eróticos de vampiros vocacionados para o público feminino. Let me In é leitura forte recomendada apenas para adultos. Existe também o filme sueco baseado na obra, igualmente um grande sucesso, e é inesquecível a ambiência sombria, invernal e assombrosa que envolve a ligação cada vez mais perturbante entre Oskar, um rapaz de doze anos dos subúrbios e Eli, a vampira que se torna a sua amiga.

É certamente o melhor filme contemporâneo que vi em anos, sem ceder a facilitismos ou soluções morais convencionais. E para quem procura um romance bem escrito com vampiros, está perante uma tal obra literária. Let me In (ou Let the Right One In como também é conhecido) não irá falhar em cumprir todas as expectativas.

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2666 ou o próximo Ulisses

August 20, 2009 at 9:20 pm (Livros/BD/revistas)

Este comentário de Eduardo Pitta sobre o livro 2666 vai de encontro ao que secretamente muitas alminhas pensarão. Em público, fica bem acompanhar as tendências da actualidade, mas quando se fala de um romance monumental como 2666, a pergunta a colocar é: seremos nós capazes de devotar tempo para ler uma obra de 1000 páginas só porque se fala bem dela e é consagrada entre a crítica? Muitos certamente o tentarão, mas quantos chegarão ao fim?

Para quem ainda não sabe, e estranharei certamente quem não saiba tanto que a blogosfera divulgou esta notícia, a editora Quetzal anunciou para Setembro a publicação da obra-prima póstuma do chileno Roberto Bolaño, intitulada 2666. Há já alguns anos que a obra de Bolaño alcançou estado de graça entre a crítica literária internacional e não serei eu a julgar o mérito ou desmérito dessa notoriedade, não tendo lido nenhum dos seus livros.

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Roberto Bolaño

Mas a publicação de 2666 prevista para Setembro em Portugal, e anunciada com pompa, circunstância e reverência pela blogosfera portuguesa como a publicação do ano deixou-me, de certa forma, divertida. E isto porque, apesar das vozes entusiastas entre jornalistas, bloggers, críticos, interessados, sei que serão muito poucos os que lerão a obra monumental de Bolãno. Poderia dizer que o preço do livro deverá ser proibitivo para certas bolsas. Mas não é só isso.

O editor da Quetzal, Francisco José Viegas, comparou o livro com Ulisses de James Joyce, essa obra mítica e também grandiosa que fica muito bem em estantes de livros intocada ao longo dos anos… Fosse eu uma leitora menos formada e experiente, essa afirmação do Viegas ter-me-ia assustado tão só porque o Ulisses de James Joyce não é um livro para qualquer leitor. Simplesmente não é. Seja em tamanho, seja em conteúdo que requer persistência da parte do leitor.

Mas talvez a questão seja mesmo essa. A editora não pretende que 2666 seja para qualquer leitor. A escolha da Quetzal é certamente interessante para certos gostos mais requintados e com certas tendências intelectuais (afinal temos que estar a par do que se diz bem lá fora…), mas a julgar pela capa algo comercial e desinspirada, não sei dizer se conseguirão atingir o sonho de qualquer editor: ser um sucesso entre a crítica em paralelo com uma significativa adesão das massas que desejem ler o livro. Desejem ler, logo, comprar.

Eu sei que muitos são os que compraram Ulisses, considerado um dos melhores romances do séc. XX, mas quem terá lido essa história que narra um único dia na vida de várias personagens na cidade de Dublin? É bom? Não há qualquer dúvida sobre a sua excelência. Mas é chato? Certamente que é. Só tenho pena que 2666 vá cair inevitavelmente na armadilha dos lugares-comuns que são ditos sobre magníficas obras de 1000 páginas sem, no entanto, ter um público que verdadeiramente o aprecie.

Pensando bem, talvez Francisco José Viegas tenha razão em comparar o 2666 ao Ulisses. 2666 poderá vir a ser o próximo livro a integrar a lista dos mais populares e menos lidos entre os leitores. E isso certamente que não é mau em termos de vendas.

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Receita de galinha com sabor a Irão

August 18, 2009 at 9:42 pm (Livros/BD/revistas)

Na sua última obra numa carreira já consagrada, Chicken with Plums (Poulet aux Prunes), Marjane Satrapi oferece-nos uma obra que herda as características tão singulares dos seus livros anteriores, a saber, um sentido de humor mordaz e a capacidade de expor um retrato a preto e branco com um traço incisivo, qual Eça, de uma sociedade que atravessa décadas de história política conturbada, com costumes e tradições únicos em todo o mundo.

Os iranianos são um dos povos mais duros e extraordinários que já me foi dado conhecer. No meu primeiro emprego convivi durante dois anos com a cultura iraniana que descobri ter muito pouco de comum com a cultura árabe. Até em coisas que pensava que conhecia, como a religião do Islão, descobri que o Irão vive o xiismo de formas que nenhum muçulmano aceitaria. Mas mais do que a questão religiosa, vivem num mundo ditado pelos seus próprios calendários, nomes de meses, feriados, e o ritmo de vida de um iraniano raramente será entendido por alguém de fora da cultura.

Dotados de uma incrível resiliência, a espinha dorsal dos iranianos raramente se quebra, forçados a lidar constantemente com a adversidade. Mas é curioso que Satrapi queira contar precisamente a história de um músico iraniano que deseja morrer, facto invulgar numa região onde os homens raramente se dão ao luxo de baixarem os braços e deixarem-se esmagar sob o peso das circunstâncias.

Mas a verdade é que Ali Nasser Khan, grande músico e tocador do instrumento tar, não deseja mais viver após o seu instrumento favorito ter sido quebrado. A história começa com as suas tentativas sucessivas de encontrar um substituto adequado ao seu muito amado instrumento, mas as lágrimas correm pelas suas faces ao ouvir as notas dissonantes de reles tares incapazes de transmitir a verdadeira música da sua alma.

Finda a música do tar, é como se tivesse findado a razão de viver de Ali Nasser Khan, um homem casado e pai de quatro filhos, infeliz no casamento e na vida. Ao contrário de Persepolis em que os acontecimentos históricos e políticos influenciam profundamente o rumo de vida da protagonista, para Nasser Ali Khan o mundo é como se tivesse cessado de existir. Sabemos que a história ocorre em Teerão em 1958, num tempo em que o primeiro-ministro Mossadegh perdeu o poder com um golpe de estado que deu lugar ao Xá da Pérsia (apoiado pelos EUA e Reino Unido). Mas isso é apenas uma nota de rodapé na vida de Nasser Ali Khan. O tar era tudo o que importava e a sua fonte de prazer.

Decidido a morrer, a autora revela-nos que a 22 de Novembro de 1958, oito dias depois de tomar a sua decisão em deixar de viver, foi enterrado no cemitério com a presença da família e amigos em luto.

E nas páginas seguintes passará a desenrolar-se a narração memorável dos oito dias finais na vida de Nasser Ali Khan em que se recordam os momentos mais importantes da sua vida; a sua relação com a mulher e os filhos, a sua juventude e paixão por uma mulher que não se concretizou, a sua mãe, figura tutelar na sua vida, até por fim ser visitado por Azrael, o anjo da morte, que lhe recorda a efemeridade da vida através de versos do poeta Khayyam.

Apenas Satrapi sabe transmitir a terrível emoção presente na vida das suas personagens, emoções dilacerantes como as que me fizeram chorar nos momentos finais do filme de Persepolis (tão curioso que as duas melhores animações que vi nos últimos anos sejam uma israelita e outra iraniana), emoções subtis mas impossíveis de esquecer como o momento em que Satrapi descreve como a primeira amada de Nasser Ali Khan não o reconhece muitos anos depois num encontro ocasional na rua para depois revelar ao leitor que nunca o esquecera e ainda o chorava…

Os leitores gostarão de ler a obra de Satrapi mais não seja para terem acesso a uma cultura extraordinária, mas inteiramente desconhecida. Galinha com ameixas é um prato tradicional iraniano e o favorito do protagonista. Por breves momentos, Ali Khan esquece-se do seu desejo de morte e é tentado de volta à vida pelo sabor da ameixa (será uma homenagem ao filme O Sabor da Cereja de Kiarostami?), mas declara por fim que perdeu a capacidade de saborear e apreciar.

Assim termina a vida de um homem insatisfeito que não foi capaz de viver em pleno, submisso a um profundo sentimento de que a sua alma ferida encontrou apenas conforto na música que expressou toda a dimensão da sua perda e tristeza. Citando os versos do poeta persa Rumi do poema Gone to the Unseen:

At last you have departed and gone to the Unseen.
What marvelous route did you take from this world?

Beating your wings and feathers,
you broke free from this cage.
Rising up to the sky
you attained the world of the soul.

[…]

Now the words are over
and the pain they bring is gone.
Now you have gone to rest
in the arms of the Beloved.

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A Invenção do Mundo Fantástico…

August 15, 2009 at 6:31 pm (Livros/BD/revistas, Strange Land)

Um dia gostaria de trabalhar num jornal diário e viver o dia-a-dia repleto de pressão de um jornalista para que possa assim encontrar uma justificação para os erros lamentáveis que vão recheando as páginas de jornais, revistas e suplementos nacionais e onde se nota por vezes uma gritante falta de profissionalismo, seja ela ditada por completa ignorância do jornalista que não sabe fazer o seu trabalho de casa, seja ela ditada por uma direcção de jornal que certamente tem os seus próprios interesses a defender.

Serve isto para expor o texto que saiu no NOTÍCIAS MAGAZINE de 15 de Agosto, suplemento do Diário de Notícias, intitulado A Invasão do Mundo Fantástico sobre a literatura fantástica em Portugal.

Comecemos pelo óbvio. O texto começa por falar sobre um género em clara ascensão e parece que a onda dos autores estrangeiros de maior sucesso trouxe com ela uma nova vaga de portugueses dedicados a este tipo de literatura. Espera-nos então um texto com uma abordagem completa sobre o panorama editorial do fantástico escrito por portugueses?  É de esperar um texto conciso que refira quais as editoras que têm desenvolvido um trabalho de destaque na área? É melhor não terem as expectativas muito elevadas…

Antes de mais, o texto começa por sublinhar como o género que conta histórias de castelos, dragões ou vampiros provou ser apreciado por um público de todas as idades. Logo, as editoras, sabendo a aposta ganha que têm entre mãos, andam a publicar dezenas de livros de fantástico nos últimos tempos. É curioso que refira este número de “dezenas” quando o próprio texto da jornalista Mariana Correia de Barros só aborda livros que se contam pelos dedos de uma mão mutilada (esta tem direitos de autor…).

Diz ela “A moda talvez tenha sido lançada por Tolkien e seguida por muitos autores como o recente fenómeno da norte americana Stephenie Meyer.” Talvez? Então não tem a certeza? Então não sabe dizer porque começou o boom do fantástico? Essa afirmação pouco rigorosa ainda comete a proeza de destacar Tolkien saltando logo para Stephanie Meyer, um fenómeno em nada relacionado com a fantasia épica que Tolkien inspirou, omitindo toda uma série de autores, colecções, projectos, subgéneros que viveram e morreram neste país antes de chegarmos à Meyer. Tudo ignorado pela jornalista porque o que interessa realmente neste texto é destacar Meyer nem que se tenham que fazer ligações forçadas de parentesco entre a vaca e a baleia, ora pois.

Segue-se uma citação do editor da Gailivro, Pedro Reisinho, sobre a popularidade do género fantástico no estrangeiro ao que se parte logo para a definição do fantástico e a sua natureza abrangente.

Nele podem ser incluídos os livros de ambiente medieval, com dragões e grandes batalhas de capa e espada, como vampiros que vivem no presente e se fundem na sociedade, ou até zombies que habitam num planeta mais futurista. Alguém tem alguma dúvida sobre a que obra se refere “vampiros que se fundem na sociedade”? Só quem tiver andado a dormir nos últimos meses e não tiver visto a campanha de marketing agressiva em torno dos livros de Charlaine Harris a ser presentemente publicados com sucesso em Portugal pela editora Saída de Emergência. Engraçado como o trabalho dessa editora nem existe para esta jornalista. Mas continuemos a dissecar o texto.

A própria fantasia urbana é um estilo em franca expansão que caminha lado a lado com o género da ficção científica. Se quer fazer uma afirmação destas, então complemente-a com exemplos de obras que mostrem a validade desse argumento. Não digo que não seja verdade, mas afinal do que se trata a fantasia urbana? Não foi explicado, simplesmente acabamos de descobrir que anda lado a lado com a ficção científica. Como e porquê, não sei, mas parece que não interessa muito.

Depois das citações de Pedro Reisinho, passamos para as de Inês Mourão, responsável de comunicação da editora Presença, que partilha connosco a ideia da vertente escapista presente na literatura fantástica, sendo essa na sua opinião a chave de sucesso do género. 

Aliás, a designação de trilogias ou tetralogias foi abandonada e hoje apenas se fala em sagas e ciclos. Pedro Reisinho diz que isso tem a ver com o facto de essas séries acabarem sempre por publicar um ou mais livros. Mas a melhor parte vem a seguir:

Mais raros, mas que começam agora a surgir, são os chamados stand-alone, títulos de fantasia ou ficção científica lançados isoladamente.

Hmm? Estou perdida. Mas afinal falamos ainda do panorama nacional ou essa é uma referência ao que se tem feito agora no estrangeiro? Se falamos do estrangeiro, stand-alones já existem há anos incontáveis ainda antes de eu sair da barriga da minha mãe há vinte e seis anos. Se estamos a falar do que se passa em Portugal, essa é uma frase que se refere apenas a um livro e um livro apenas que saiu nos últimos meses no mercado português publicado pela… Gailivro. Ai que os leitores já devem estar fartos de ver mencionados os autores da Gailivro neste texto e ainda nem chegámos à segunda página. Vai piorar, acreditem. Falo da obra do Octávio dos Santos Espíritos das Luzes. Claro que é o autor que é referido logo de seguida no texto e também entrevistado.

A seguir ao Octávio, é a vez de a Madalena Santos ser entrevistada, autora da saga Terras de Corza. Para que não restem dúvidas, conheço o Octávio e a Madalena, estive presente nos lançamentos dos seus últimos livros (embora o Octávio só tenha conseguido chegar no fim) e são duas pessoas que estimo bastante, e não coloco em questão as suas obras, mas este texto jornalístico por esta altura já começa a parecer um apanágio à Gailivro e de como o seu trabalho tem sido ÚNICO e FUNDAMENTAL neste país. O que é FALSO, porque estão longe de ser a única editora a apostar no campo da literatura fantástica. Mas quero continuar a dissecar o texto.

E saltemos para o último autor entrevistado e citado, que não poderia deixar de ser referido, claro. Referido até à exaustão em todos os textos jornalísticos sobre fantasia em Portugal, ele é considerado o pioneiro da fantasia épica portuguesa. Verdade seja dita, é o pioneiro da primeira fantasia épica portuguesa que VENDEU em Portugal. Falo do Filipe Faria, claro, com direito a foto e tudo (a barba fica-te melhor, Filipe, e ainda bem que já te desligaste do ar neuro-gótico).

E este malfadado texto termina com um parágrafo:

Estes três autores são apenas alguns dos autores que têm aproveitado agora a vaga do fantástico para tentar a sua sorte. Também na Internet se multiplicam os contos do género e há editoras que apostam na criação exclusiva de colecções exclusivas do fantástico.

Q-U-A-I-S? Um texto sobre “a invasão do mundo fantástico” em Portugal não pode lançar essa afirmação e ficar-se por aí impune. Quais colecções exclusivas de fantástico? Eu posso ajudar. Será a colecção Bang? Ou a colecção Teen? Ou a colecção Argonauta que vai ser revitalizada em breve? Provavelmente nem sabia dessa a jornalista.

Vergonhoso e deplorável, é o que chamo a este texto. E como se não fosse mau o suficiente o conteúdo completamente parcial e propagandista dos produtos com a marca Gailivro, ainda é inserida uma coluna lateral, cúmulo dos cúmulos, com o título OS GRANDES DA FANTASIA INTERNACIONAL. Esta é fulminante.

Começa por referir JRR Tolkien, inspiração de centenas de autores, para depois referir Marion Zimmer Bradley e o marco especial que constituiu para o público feminino com o seu quarteto As Brumas de Avalon, sendo os grandes nomes da fantasia internacional a seguir mencionados… Christopher Paolini e Stephenie Meyer… Como diria Sookie Stackhouse (personagem de Charlaine Harris) em verdadeiro calão white trash sulista, SHUT THE FUCK UP. Eu digo-vos um gigante da fantasia internacional que não mencionaram mas que deviam: George R. R. Martin, mas se calhar não era conveniente porque, por acaso, é um autor da Saída de Emergência que está a vender que nem pãezinhos quentes e não precisa de mais ajudinhas para vender.

É um insulto este texto. Insulto às editoras que são tão boas ou melhores que a Gailivro na promoção do fantástico em Portugal, insulto aos autores portugueses dessas editoras que mereciam também destaque, insulto à inteligência dos leitores por pensarem que se não referirem os outros elefantes no centro da sala ninguém vai reparar neles, e insulto ao próprio género da literatura fantástica por ter que sofrer com jornalistas que ou são forçados a escrever com limitações impostas pela direcção ou porque simplesmente o trabalho foi encomendado.

São as regras do mercado mas eu não tenho que aturar isto e engolir bullshit.

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Crime e Castigo

August 2, 2009 at 5:29 pm (Livros/BD/revistas)

As edições Relógio d’Água anunciam uma nova edição do clássico de literatura russa Crime e Castigo de Fiódor Dostoievski, numa tradução do russo por António Pescada. Não será a primeira tendo a 1ª edição portuguesa traduzida do russo surgido sob alçada da Editorial Presença (tradução de Nina e Filipe Guerra).

Embora tenha lido a obra pela primeira vez na língua inglesa, seria interessante proceder a uma nova leitura tão só porque algumas traduções em línguas europeias terão romantizado ou suavizado a aspereza e crueza do russo de Dostoievski. E porque se trata de uma das obras cimeiras da literatura mundial? O texto de apresentação revela uma história aparentemente simples.

Raskólnikov, um estudante pobre e desesperado, vagueia pelos bairros degradados de São Petersburgo e comete um assassínio. A vítima é uma velha usurária. Raskólnikov imagina-se um grande homem, agindo por uma causa que está para além das convenções da lei moral e o coloca acima do comum dos mortais.

Crime e Castigo

A acção não é movida apenas por miséria ou extrema necessidade, mas por uma intensa crença de que o acto do crime o irá colocar acima de qualquer princípio moral que possa imperar na sociedade. Raskólnikov deseja pertencer ao panteão exclusivo dos homens que não tremem perante as consequências morais dos seus actos, mesmo que possam semear tragédia.

Mas o crime persegue-o e abala a essência do seu ser. Grande parte do romance trata-se do dilema psicológico que a personagem tem que enfrentar. Ele afunda-se num crescente desespero, exacerbado pela miséria a que assiste nas ruas de São Petersburgo. Através de Sónia, uma prostituta, conhece algum alívio espiritual e a fé da rapariga poderá trazer-lhe eventualmente salvação, mas apenas se Ráskol der o passo final para o abismo, a confissão.

Não é fácil acompanhar a mente distorcida do estudante durante as páginas de Crime e Castigo, mas o leitor não consegue recusar ver a humanidade e os males que a corroem. Somos inteiramente absorvidos e exauridos das nossas forças pela caminhada de Raskólnikov em direcção às trevas e das trevas para a luz.  Assusta-nos a solidão, a miséria, a falta de esperança que mina todas as acções de personagens destituídas, corrompidas pelos vícios de uma sociedade cruel, como o jogo, alcoolismo e o crime. Mas nem tudo são trevas. A história de Raskólnikov ensina-nos que apenas através do sofrimento pode o homem alcançar a redenção. Apenas quando os pés tiverem tocado o fundo do abismo, pode o medo e a fé e a crença em amor salvar um homem e guiá-lo de novo em direcção à vida.

Raskólnikov poderá não ser Napoleão, um homem para além de qualquer compromisso moral, mas representará melhor do que qualquer outro as limitações e imperfeições que assolam o ser humano. Apenas profetas e loucos poderão atingir a transcendência e Raskólnikov nem é profeta, nem louco o suficiente para renegar tudo o que aprendeu.

Leiam o livro, mas apenas se tiverem a coragem para acompanhar a jornada de Raskól. Nem todos são capazes como Dostoievski de pôr a nu a alma e enfrentar os terríveis segredos que lá se ocultam.

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