Who watches the Watchmen?

August 1, 2006 at 7:42 pm (Livros/BD/revistas, Strange Land)

Antes de começar a nova guerra do Médio Oriente, lia diariamente algumas páginas de Watchmen de Alan Moore. Para quem não conhece, trata-se de uma novela gráfica que lida com super-heróis de uma forma nunca antes vista. Nos anos 50, surge um grupo de justiceiros mascarados, crimebusters que não são retrados como personagens imaculadas ou livres de culpa; têm as suas próprias obsessões, vícios e defeitos. Mas depois veio Dr. Manhattan, um homem que, devido a um acidente nuclear, tornou-se numa entidade supra-humana, detentora de extraordinários poderes. Isso não impediu que uma nova geração de super-heróis surgisse nos anos 70 que participavam nas guerras da América até ao momento em que o grupo foi ilegalizado, tendo cada um deles prosseguido com as suas vidas.

watchmen

Este é meramente o background. A história no momento presente envolve uma conspiração que anda a eliminar os ex-heróis mascarados um por um, no momento em que o mundo se vê de novo sob ameaça de uma nova guerra mundial iniciada pelos soviéticos (a BD foi escrita nos anos 80 e os efeitos da Guerra Fria ainda se faziam sentir). Ainda falta-me cerca de 1/4 da novela gráfica para terminar, mas tem sido impressionante como sinto que a realidade de Watchmen poderia ser tão facilmente transposto para a nossa realidade actual. A população vive no medo de mais uma guerra, iniciada com a invasão do Afeganistão pela Rússia, e é palpável o sentimento de descontrolo e pânico que ameaça emergir e derrubar os velhos pilares de ordem e lei. À medida que se avança na leitura da BD, esboça-se um cenário de apocalipse iminente, e esse sentimento de perigo e desespero ameaça tomar controlo da sociedade americana, aparentemente desprovida de salvadores.

À medida que ia progredindo a leitura, chegavam, ao mesmo tempo, as notícias diárias dos bombardeamentos israelitas, e não podia deixar de sentir como Alan Moore era um visionário. Embora não com total exactidão em relação aos protagonistas da guerra, foi capaz de prever a perversidade gradual dos princípios e valores que se foi cimentando na sociedade ocidental, em particular, na América. Transcrevo uma pequena citação do artigo de jornal fictício que surge no final do capítulo 8.

Similarly, during our perfectly justified retaliatory bombing of Beirut in 1979, there were many of our so-called-fair weather-friend European allies who were bleating about supposed infringements of international law. Yet what are laws made for, if not to serve mankind? And if those laws, through unforeseen circumstance become no longer applicable, is it not more noble to follow the course of right and justice; to serve the spirit of the law rather than its every dot and comma? In my book, anyone answering that question in the negative is someone without the moral backbone to call himself an American.

Aparte o contexto da história em que esta frase é dita, este pequeno excerto prenuncia a postura perniciosa que iria marcar a política externa e interna americana (nem falta a ironia de Beirute a ser bombardeada) dos nossos tempos. Ao declararem seguir o nobre caminho da justiça e pretenderem emendar os males do mundo, esquecem-se de que, esta atitude aparentemente democrática e civilizada, corre o risco de se deturpar por completo, quanto mais deturpados forem os valores e princípios que regem as cabeças pensantes e não-pensantes da sociedade americana. Imagine-se se algum dia o presidente americano fosse um cristão fundamentalista, rodeado por uma corja incompetente e ignorante desses mesmos cristãos que exercem sem qualquer remorso censura nos media e instauram uma política dita humanitária, mas que no fundo vem-se assemelhando cada vez mais ao estado Orwelliano do livro 1984 .

Não seriam os valores morais desse governo prejudiciais na medida em que longe de terem como objectivo to serve mankind, afundariam o mundo numa série de guerras que quebram todas as leis e, inevitavelmente, conduzir a outro conflito de proporções mundiais?

Infelizmente, exactamente como os super-heróis criados por Moore, os presidentes americanos não são seres desprovidos de falhas morais. Têm as suas próprias psicoses, obsessões, interesses, e dificilmente podem representar a civilização moral como deveria ser. Raramente servem o espírito da lei, embora induzam as mentes mais incautas a julgarem isso. A pergunta essencial permanece, Who watches the Watchmen, essas entidades responsáveis pela vigilância da nossa conduta moral?

Watchmen tem a vantagem de ter os seus próprios messias interessados em manter algum semblante de ordem e progresso. Messias com falhas, é certo, mas ainda assim, Dr. Manhattan representa o super-homem de quem a sociedade espera a salvação. O nosso mundo nem isso tem sequer.

Tornou-se um mundo deprimente, embora os confortos de uma sociedade, dita do primeiro mundo, possam ocultar isso momentamente. Pequenas esperanças não escondem facilmente o grande esquema das coisas em que uma vida já não tem o mesmo valor que outra. Sem nenhuma forte liderança com o minímo de bom senso, sem nenhum grande homem sábio saído de lendas antigas, sem nenhum messias, tornámo-nos tão cegos como os cegos em Ensaio Sobre a Cegueira de Saramago. Lutando pela sobrevivência apenas, tentando evitar que as calças se arrastem pela sujidade no chão. Quem irá salvar estas pessoas da escuridão?

A uma dada altura, em Watchmen, uma das personagens diz:

Whoever we are, wherever we reside, we exist upon the whim of murderers.

Assassinos de todas as facções radicais, tornando o coração do mundo a cada dia mais negro, mais desesperante, até que as batidas cessem. E as vozes moderadas são completamente despedaçadas e atiradas ao vento perante a violência e hostilidade desta época histórica em que vivemos.

4 Comments

  1. Rogério said,

    É fácil olhar para pessoas como o Alan Moore como visionários, mas o que são na realidade é bons juizes de carácter e bons conhecedores da natureza humana.
    A História tem o condão de se repetir, e os homens de cometer os mesmos erros, que se tornam aparentes para quem saiba olhar para a sociedade com um olhar suficientemente crítico e analítico.
    Por outras palavras, Harry Seldon explica 😉

  2. Artur said,

    Lembro-me perfeitamente que a minha primeira leitura de Watchmen me deixou com uma inquietante sensação de realidade. Sabia perfeitamente que era uma obra de ficção, mas havia alguma coisa que me fazia sentir que algo ali era real. Talvez porque Moore criou ficção a partir do carácter da realidade…?

  3. Mozart Werther said,

    watchman .. hum… sem palavras, digo.. muitas palvra, que a coisa está aquem da minha capacidade.

  4. Safaa Dib said,

    Rogério, visionário para mim é mesmo isso, não alguém que prevê o futuro, mas que tem o talento em expor a condição humana. Como dizia Eça, “No entanto, às vezes os que reflectem o seu tempo, criam: e é quando não revelam só o carácter de um momento, um estado convencional e passageiro, mas traduzem e explicam toda a alma de um povo.”

    Artur, a mim faz-me imensa impressão a leitura precisamente por me fazer sentir de uma forma intensa o quanto é actual.

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